Como escrever um romance
Ela:
Normalmente não começa com “era uma vez”. Das várias vezes que você
começa, acaba por não começando nada, e quando de uma vez te pega, já
começou, e você? Você, sem nem perceber, já suspira um conto de fadas.
Se eu soubesse que ia começar hoje não estaria com esse vestido
desbotado, não daria risada comendo amendoim e nunca, definitivamente
nunca, escolheria essa cólica monstruosa.
Ele: Eu posso voltar outro dia.
Ela: Claro que não, que isso, não liga para o que eu falo.
Ele:
Eu não ligo. Por mim ela poderia estar falando qualquer coisa. O começo
nem sempre é o conteúdo, mas a sintonia. Isso que faz a mesa de um bar
cheio de bêbados fedendo a cerveja se transformar num belo cenário
romântico. Poderia ser um ponto de ônibus, a fila de um banco, o degrau
de uma igreja. E daí se alguém cair aqui do lado? Eu viro comunista,
corintiano e ateu se for preciso, só não pare de falar, por favor.
Ela: Falou comigo?
Ele: Não, tava pensando alto.
Ela:
Será que tá tão na cara assim? Vou para de olhar. Talvez eu me esconda
atrás desse cabelo horroroso. Porque tinha que ventar logo hoje? Mas e
se ele me descobrir? Eu descubro o que eu não procurava. Ou procurava?
Posso encontrar o que não busco? Justamente quando tento me esconder
daquilo que mais queria? Eu quero, assumo, mas deixo para que ele
descubra, não dizem que no amor esse é o principal momento?
Ele:
Chega até a ser engraçado o tanto que nos vendemos nessa hora. A gente
não perde uma oportunidade para provar as semelhanças. Usamos a mesma
mão para buscar o amendoim. Temos o mesmo gosto por cerveja. Ela disse
que gosta de blues e eu tenho certeza que ouvi Little Richards na
recepção do dentista hoje cedo. É um sinal.
Ela: O que disse?
Ele: Nada, desculpa.
Ela: Não precisa se desculpar.
Ele: Tá bom, desculpa.
Ela: Se fosse num filme a nossa mão se encontraria, ele pagaria a conta e me ofereceria uma carona.
Ele: E você?
Ela: Não, obrigado, volto de táxi.
Ele: Mas está tarde, eu moro perto da sua casa, não tem problema.
Ela:
Não quero incomodar. Não quero muita coisa. Quero que goste de flores
no cabelo, de vestido florido, mas às vezes de salto alto. Quero que não
se importe com meus dias ruins e nesses dias ruins eu quero chocolate. E
quero colo. E carinho na cabeça. Quero falar de política e assistir ao
futebol com você. Até busco a cerveja se você não fizer disso um troféu
quando seus amigos estiverem em casa. Mas também quero que não durma
quando tiver filme e pipoca. Quero que goste de viagens, quero que goste
da nossa casa. Quero que desenhe um coração na janela, que tome banho
de chuva comigo. Quero que fique, ainda tá cedo.
Ele: Eu não sei se devo.
Ela: Qual o problema? Minha mãe até fez bolo.
Ele:
Tá bom, só mais meia hora. Mais meia hora e daqui a pouco estamos
juntos de novo. Será que ela gosta de rosas? E se todo mundo estiver de
chinelo, o que eu faço com esses sapatos novos? Eu vou aprender a
cozinhar. E a tocar violão. Tenho que leva-la pra jantar naquele
restaurante japonês. E não deixar toalha molhada na cama. E acordar mais
cedo pra preparar um café com leite. Tá bom de açúcar?
Ela:
Tá perfeito. A viagem, as fotos, os bombons. Parece que faz tanto
tempo. Parece que me mudei ontem, que ontem mesmo essa casinha tava
vazia. E sentávamos nas almofadas para assistir tv. Que comíamos com o
prato no colo. Parece que..
.
Ele:
Agora a palavra aparece à boca muito mais fácil. O “eu te amo” que
morria entalado na garganta agora dança tango. Que o silêncio agora é
poesia de quem sabe o que ouve, mesmo distante. Parece que fiquei
romântico! Agora pouco importa se as frases bonitas que dizia vinham de
uma embalagem de bombom. Que pra mim blues era só uma cor e que vestido
florido era coisa de hippie. Não está mais na sintonia, nem no conteúdo.
Está na forma que a nossa sombra forma de tardezinha. Está na...
Ela:
Nas fotos, nas cartas, na despedida. Ele continua nas músicas que eu
ouço, na roupa que eu uso, no caminho que eu faço. Ele está na pergunta
dos amigos, no lixo que não foi pra fora, na minha cara amassada no
espelho, naquela cadeira vazia. Ele teima em ficar nas paredes, na
estante, no criado-mudo. Porque ele não vai embora de vez?
Ele: Eu esqueci uma coisa.
Ela: O que é?
Ele: Não sei, me ajuda a procurar?
Usar ou não usar se é proibido conjugar?
Sobre a "arte" de comprar camisinhas
Entre médicos e homens