domingo, 20 de novembro de 2011

Rei de mim


Olhe pra ela, contando moedas. É uma boa mãe até, pena que bebe. Bebe pra esquecer dessas moedas talvez. Ela bebia mais, parou quando nasceu o mais novo. Sustentar cinco é difícil. Queria um trabalho, parece que semana passada quase chamaram ela para um supermercado do centro. Ela usou perfume, lavou a roupa da missa, disse que voltava com doces. E voltou. Os pequenos adoraram. Mas eu percebi que o sorriso ela deixou lá.

Olhe pra ela, tão preocupada com todas as coisas. É uma boa mulher. Faz-se de mãe tão de repente. Queria um emprego. Se fosse alguns anos mais nova talvez conseguisse. Não que seja velha, mas ela não se encaixa mais. Esguia, magricela, não é bonita. “Eu era linda, a mais bonita da classe” mostrou uma vez em fotos sobre a cama. Eu vi ela chorando aquele dia. Carregar cinco é difícil. Deu um aperto no peito. Ela me contou dos namorados, do pai ciumento. “Seu avô tocou ele de casa com uma pá! Uma pá, acredita?” e ria seus dentes tortos.

Olhe pra ela, mesmo magricela bate doído. Vara, cinta, fio, vassoura. Quando eu tô perto eu seguro, não deixo bater no bebê. Aí ela vai para o quarto e se tranca. A maior faz a janta, feijão com farinha e cebola. Quando tem batata é festa. Ela fritou uma vez pra nós e disse que é igual comida de estrangeiro. Teve uma noite que ela não bebeu, nos levou na laje e contou sobre as estrelas. Disse que cada um de nós tem uma lá, que fica lá de cima vendo o que a gente não vê.

Eu acho que a minha tá vendo muita coisa.

Eles olham pra ela contando defeitos. Todos aqui nesse ônibus, com lugares pra chegar, compromissos, contas pra pagar. Gostam de estar do nosso lado, assim podem ver alguém de cima. Qualquer um com seus pobremas e problemas. Notam nossos tênis furados, nossas meias coloridas, nossas camisetas manchadas de rosa, nossos shorts menores que o corpo. Notam a calcinha dela pra fora da calça enquanto ela conta trocados. Não tem nada a ver com a nossa cor. A coisa tá no olho deles, eu vi.

Olhem só para ela, chacoalhando trocados no bolso, pendurando as crianças nos ombros, desviando de todos para alcançar a porta do ônibus, sem economizar cotovelos e gritos para os menores. Carregar cinco é difícil, dá trabalho. Eu sei. Ela arruma a roupinha do bebê, mas deixa o nariz sujo, tem que limpar, ele fica incomodado. Ele passou a noite com febre, piorou de manhã. Agora vai no médico.

Eles desceram.

Não desço.

Ela me grita de fora do ônibus.

Não ouço.

O bebê tá chorando, os menores com medo.

Fecho os olhos.

Carregar cinco é difícil.

Vou procurar minha estrela.

Carregar quatro é mais fácil.

Um comentário:

  1. Pombas! Adorei!
    Aquela "regrinha" de fazer o leitor se sentir na história você aprendeu bem :)
    Parabéns Gu :*

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