domingo, 19 de agosto de 2012

Fabulesco


Parou de correr. Sentiu de novo o vento e o som que ele fazia na grama, um pouco mais de silêncio e era fácil ouvir algum pássaro no fundo, assobiando uma cantiga engraçada: o caos não chegou neste canto do mundo. Debulhou um pedaço de espiga que trazia no bolso, escolheu um cantinho para servir de berço e afundou as sementes uma a uma. Do cantil pendurado deixou escorrer as gotas de água limpa e fresca, revirou a terra e bateu o pó dos joelhos. Fechou a tampa e voltou a correr.
Quando passou da terceira árvore ao pé do monte mais alto que já viu na vida, encontrou a carroça com um senhor corcunda. Cabisbaixo, o velho não sabia se segurava a carroça ou concertava a roda, fazia os dois sem fazer nenhum. Ofereceu ajuda ao pobre velho corcunda, não sem antes fazer uma reverência, como tinha aprendido:
- Ilustríssimo ilustrado senhor das frustrações. Frustrastes ao tentar atravessar o vale sem cuidado? Se cuidado fosse seu companheiro de viagem, traria pelo menos um terceiro para contar-lhes uma piada e segurar-lhe a carroça enquanto o senhor colocasse a roda. Mas vejo que de rodado e descuidado o senhor tem de sobra. Sobrastes, então, se por mal uso ou por descuido, uns trocados para seu futuro companheiro de viagem?
- De que falas?
- Por bem menos que tu tens no bolso eu te coloco de volta ao rumo. Conheço esses vales por uma vida inteira, mas não levaria dois dias pelo caminho certo. Pelo meio certo daria uns dez dias e o resto da vida pelo errado. De certo que a minha caridade não se compra com sorriso, por mais que o senhor não tenha tantos. Ajudemos os dois lados, então: não te forço gracejos, aceito os trocados e vamos os dois, com o cuidado do lado.
- Concerta a roda?
- E seguro a carroça.
Assim os dois, em contraste, desceram a estrada ao sul do vale das árvores baixas e frondosas. Logo depois das primeiras horas o velho entregou as rédeas e se jogou com a carga de algodão a procura da sua garrafa de rum.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

José, sobrenome Ninguém

É uma sexta-feira pós-feriado, já é a quinta vez que busco café. Serve para matar o tempo. E tá frio, onze graus aqui dentro do escritório. Uns cinco na garoa que tá lá fora, se não estiver menos. No meio dela, um senhor arrasta seu carrinho parando de lixeira em lixeira. Daqui não consigo ver mais que seus trapos.

Deve se chamar José, o velho. Não deve ter mais de setenta. Arcado, rosto decorado de rugas, José parece não se importar com a chuva rala de quase inverno. Seu carrinho tá vazio, sinal que tem muito que fazer antes de voltar pra casa. Das janelas dos prédios vizinhos outros tantos entediados como eu acompanham seus passos.

José deve ter um sobrenome que dividiu com a mulher e com os filhos. Com eles, divide também uma casa de poucos cômodos e muitos cachorros. Antes de morar na cidade, José deve ter lidado na roça, tocado boiada, plantado feijão na enxada. Ele deve ter sido um menino salpicado de terra, um rapazinho com dente de cárie. Na roça não tem luxo não, sinhô.

Mesmo sendo rapazote banguela, José se enrabichou por uma mulata. Prometeu um pedaço de terra pra-mode-uma-casinha-fazê. Roçava capim, remendava cerca, curava bezerro, carregava mudança pra um dia casá. Dia, noite, sol, chuva. Juntava trocado pra fazer o mercado e dá de cumê pro neném que tá pra chegar. O terceiro nasceu bronquitoso, depois de muito custo vendeu o que tinha e veio pra cidade enfrentar fila de posto. “Aqui a gente se acerta, morena”.

Enfiou na Kombi do vizinho um bule azul, colchão véio, botina, tv sem antena, porta-retrato, livro de receita, a camisa de ir na missa, fogão, cômoda, penteadeira, mulher e as crianças.

José sentiu alegria de ver nascer cinco filhos.

José não lê, não sabe assinar seu nome.

José não teve dinheiro pra ir enterrar o pai, que ficou na roça.

José foi feirante, porteiro, carregador, caminhoneiro, servente.

José reza pra Nossa Senhora do Desterro todas as noites.

José emprestou dinheiro pra comprar o carrinho que tá puxando.

José não tem feriado.

José tentou, mas vai morrer pobre sem conseguir metade das coisas que prometeu pra mulata. Ás seis horas nós vamos pegar nossos carros e ir pra casa curtir o final de semana.

Eu só queria saber em qual tipo de mundo é justo sermos nós, e não José, a estarmos desse lado da janela.

sábado, 5 de maio de 2012

Sétimo dia


Terminou o café que fez para dois e recolheu a outra xícara intacta. Levou até a pia, lavou-as com o mesmo cuidado de sempre e secou na toalha bordada que estava sobre o fogão. Correu entre os armários até a porta que separaram para a coleção de canecas e colocou as xícaras no canto que era só delas.

A luz pálida que atravessa a cozinha dá tom pastel aos móveis de cores escolhidas a dedo. Sobre a mesa uma toalha xadrez, um jarro meio vazio e uma margarida recém-trocada. Os sonhos e cuidados de uma vida que já foi teimavam em contrastar com o silêncio abafado daquela casa sem ela.

Abriu o armário pela terceira vez e jogou na cama mais uma camisa amassada. “Tem que passar a gola” ela dizia, “Você sempre esquece de passar a gola”. Escolheu a preta de flanela, sua preferida. “Não é um Johnny Cash, mas eu pego”, ela provocava rindo, esperando seus ciúmes.  Na parede do quarto, além de Cash, Dylan, Presley, Jagger, Lennon e até Ringo. Com o tempo ele aprendeu a não vê-los como inimigos.

“Foram dias ruins, meu amigo” disse ao cachorro que chamavam de Estopa. “Mas vai ficar tudo bem agora”. A luz de quase tarde se espreguiça no sofá da sala, alcançando o tapete como os braços de quem dorme. Na mesa de centro um dvd do Engenheiros e um livro de Bukowski. Escolheu o primeiro como companhia até que desse o horário marcado, em outros dias faria o contrário.

Nem um minuto a mais, vê Estopa o acompanhar até a porta e depois correr para a janela. Bate a porta do carro e acelera, levando a sensação de vazio que alimentou como um filho nos últimos dias. Chegou ao local marcado e acompanhou a marcha, nos outros rostos a mesma angústia refletida, o mesmo filho alimentado, os mesmos olhos no desespero da procura.

Respirou fundo e segurou como pode para não chorar feito criança no saguão do aeroporto. Podia se acalmar agora, seu sorriso estava de volta.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Crônica de um amor vivido

- Primeiro eu quero um encontro casual, desinteressado, eles não estão se procurando, entende? Ela não acredita em namoro, ele escreve contos sem saber pra quem. Ela é sempre aquela da roda que diz não precisar de garotos, já ele duvida alguém vá gostar de que escreve. Eles conversam, somam autores e combinam de dividir cervejas, há uma sintonia inexplicável.

- Mas eles se encontram?


- Não, isso demora um pouco. Não poderia ser tão fácil. Ele passa dias tentando descobrir quem é aquela menina de cabelos vermelhos que conheceu pelas fotos. As conversas deixam de ser superficiais quando começam a confidenciar planos, repartir medos. Até esse momento não aparece seus rostos, suas vozes são uma dúvida. "Será que ela tem sotaque?", "Ele pode ser meio fanho... gago, talvez". As cenas são em close fechado, na penumbra de dois quartos escuros e as batidas nos teclados que só param quando surge uma pergunta na tela: "Quando vai pagar as cervejas que me prometeu, menino?", fim do primeiro take.


- Eles marcam um primeiro encontro?


- Esse é o segundo, ele já furou uma vez. Disse que ia, que avisaria quando estivesse na frente do bar. Ela conferia o celular de cinco em cinco minutos...


- Como assim? Você mesmo disse que ela "não precisa de garotos"...


- E quem sabe explicar? Ela quase desistiu, mas uma banda legal iria tocar na cidade. É uma sexta a noite, uma sexta-feira de noite sem lua. Quando o celular toca, é ela. Uma voz tão doce e delicada que o convence a sair de casa - na verdade, o convenceria a fazer qualquer coisa depois disso. O bar é pequeno, rústico e com gente estranha pra todos os lados. No momento que eles se vêem eu quero que suba o som, um rock instrumental que abafe as conversas.


- Sobre o que eles conversam?


- Bebidas, remédios, lixeiras... não era isso que importava, na verdade. Ela não para de rir, ele traz mais cervejas. "Deus, como ela é linda" é a única coisa que consegue pensar. O som fica mais alto, a fumaça aos poucos toma conta da cena, as luzes explodem num frenezi melódico, um beijo.


- E depois?


- A sintonia... aquela sintonia de novo... nunca se foi, na verdade. Todo desconforto evapora, a mão delicada o puxa correndo de volta ao rock. Nessa parte eu quero o som muito alto, muita gente, fumaça, bebidas, arranhões, um vocalista louco deitado no palco e frases susssurradas com a sinceridade etílica das quatro da manhã. Fim do segundo take.


- No outro dia ninguém se lembra de nada?


- Longe disso, eles querem se ver, precisam se ver. Marcam um cinema, depois um jantar. O assunto é sempre novo, as ideias se completam, as mãos se encaixam. Eles passeiam a noite, ao redor de um parque e em instantes estão em Paris.


- Paris? Paris, na França?


- É, eles estão numa das avenidas parisienses, numa daquelas garoas características da década de 20. Eu quero que no fundo toque "Mr. Tambourine Man", do Bob Dylan. É uma bela música... Eles falam sobre Goethe, Bukowiski, Cervantes, von Trier, Chaplin, Hitchcock... só os dois numa Paris iluminada. Eles sentam num banco qualquer e se encaixam num abraço que parecia guardado. Ela encosta a cabeça em seu peito e ele sussurra um poema...


- "De tudo ao meu amor serei atento..."


- Esse! Vinicius! O mais piegas e arrebatador soneto etílico de toda a história. Cada frase... "Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto..."


- "Que mesmo em face de maior encanto, dele se encante mais meu pensamento"...
- Belíssimo! E quando ele termina, percebe que nada se compara aos olhinhos brilhando daquela menina de cabelos laranjas. E ela percebe que nenhum lugar no mundo é melhor que aquele abraço... até que a lágrima... a lágrima... uma lágrima escorre. Fim do terceiro take.


- E depois, eles brigam?


- Depois a trilha muda, eu quero Beatles! E a guitarra elétrica de "Blackbird", "Strawberry Fields Forever" e "All my loving" entorpecendo as cenas, os dois tropeçando nas ruas de uma Liverpool em preto e branco! De repente aquilo tudo ganha explicação nessas canções. Para ele, já é impossível falar de amor sem lembrar dela. E quando eles se despedem, a alegria transborda pelos olhos e em segundos ela corre em sua direção a procurar de um último beijo. Ela, uma ruivinha linda e sorridente... saia, meia arrastão e cigarros. Ele, cabelos bagunçados, calça xadrez e uma camisa de uma marca de whisky.


- Quando é isso?


- Ano novo! O primeiro reveillon juntos... imagine os fogos, os brindes... eles estão numa chácara com champagnes, vodkas e gargalhadas. Enquanto todos se divertem, os dois fogem. Fogem para perto de um e do outro. A música ao fundo, uma noite clara, os olhos dela, a boca dele. Ele promete, ela desdenha. Ela lembra, ele insiste. Ele beija, ela cede. Ela chora, ele abraça. Ele sorri, ela também. E num segundo eles aceitam ir para qualquer lugar, desde que juntos. "Quer namorar comigo?'. Fim do quarto take.