domingo, 5 de fevereiro de 2012

Crônica de um amor vivido

- Primeiro eu quero um encontro casual, desinteressado, eles não estão se procurando, entende? Ela não acredita em namoro, ele escreve contos sem saber pra quem. Ela é sempre aquela da roda que diz não precisar de garotos, já ele duvida alguém vá gostar de que escreve. Eles conversam, somam autores e combinam de dividir cervejas, há uma sintonia inexplicável.

- Mas eles se encontram?


- Não, isso demora um pouco. Não poderia ser tão fácil. Ele passa dias tentando descobrir quem é aquela menina de cabelos vermelhos que conheceu pelas fotos. As conversas deixam de ser superficiais quando começam a confidenciar planos, repartir medos. Até esse momento não aparece seus rostos, suas vozes são uma dúvida. "Será que ela tem sotaque?", "Ele pode ser meio fanho... gago, talvez". As cenas são em close fechado, na penumbra de dois quartos escuros e as batidas nos teclados que só param quando surge uma pergunta na tela: "Quando vai pagar as cervejas que me prometeu, menino?", fim do primeiro take.


- Eles marcam um primeiro encontro?


- Esse é o segundo, ele já furou uma vez. Disse que ia, que avisaria quando estivesse na frente do bar. Ela conferia o celular de cinco em cinco minutos...


- Como assim? Você mesmo disse que ela "não precisa de garotos"...


- E quem sabe explicar? Ela quase desistiu, mas uma banda legal iria tocar na cidade. É uma sexta a noite, uma sexta-feira de noite sem lua. Quando o celular toca, é ela. Uma voz tão doce e delicada que o convence a sair de casa - na verdade, o convenceria a fazer qualquer coisa depois disso. O bar é pequeno, rústico e com gente estranha pra todos os lados. No momento que eles se vêem eu quero que suba o som, um rock instrumental que abafe as conversas.


- Sobre o que eles conversam?


- Bebidas, remédios, lixeiras... não era isso que importava, na verdade. Ela não para de rir, ele traz mais cervejas. "Deus, como ela é linda" é a única coisa que consegue pensar. O som fica mais alto, a fumaça aos poucos toma conta da cena, as luzes explodem num frenezi melódico, um beijo.


- E depois?


- A sintonia... aquela sintonia de novo... nunca se foi, na verdade. Todo desconforto evapora, a mão delicada o puxa correndo de volta ao rock. Nessa parte eu quero o som muito alto, muita gente, fumaça, bebidas, arranhões, um vocalista louco deitado no palco e frases susssurradas com a sinceridade etílica das quatro da manhã. Fim do segundo take.


- No outro dia ninguém se lembra de nada?


- Longe disso, eles querem se ver, precisam se ver. Marcam um cinema, depois um jantar. O assunto é sempre novo, as ideias se completam, as mãos se encaixam. Eles passeiam a noite, ao redor de um parque e em instantes estão em Paris.


- Paris? Paris, na França?


- É, eles estão numa das avenidas parisienses, numa daquelas garoas características da década de 20. Eu quero que no fundo toque "Mr. Tambourine Man", do Bob Dylan. É uma bela música... Eles falam sobre Goethe, Bukowiski, Cervantes, von Trier, Chaplin, Hitchcock... só os dois numa Paris iluminada. Eles sentam num banco qualquer e se encaixam num abraço que parecia guardado. Ela encosta a cabeça em seu peito e ele sussurra um poema...


- "De tudo ao meu amor serei atento..."


- Esse! Vinicius! O mais piegas e arrebatador soneto etílico de toda a história. Cada frase... "Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto..."


- "Que mesmo em face de maior encanto, dele se encante mais meu pensamento"...
- Belíssimo! E quando ele termina, percebe que nada se compara aos olhinhos brilhando daquela menina de cabelos laranjas. E ela percebe que nenhum lugar no mundo é melhor que aquele abraço... até que a lágrima... a lágrima... uma lágrima escorre. Fim do terceiro take.


- E depois, eles brigam?


- Depois a trilha muda, eu quero Beatles! E a guitarra elétrica de "Blackbird", "Strawberry Fields Forever" e "All my loving" entorpecendo as cenas, os dois tropeçando nas ruas de uma Liverpool em preto e branco! De repente aquilo tudo ganha explicação nessas canções. Para ele, já é impossível falar de amor sem lembrar dela. E quando eles se despedem, a alegria transborda pelos olhos e em segundos ela corre em sua direção a procurar de um último beijo. Ela, uma ruivinha linda e sorridente... saia, meia arrastão e cigarros. Ele, cabelos bagunçados, calça xadrez e uma camisa de uma marca de whisky.


- Quando é isso?


- Ano novo! O primeiro reveillon juntos... imagine os fogos, os brindes... eles estão numa chácara com champagnes, vodkas e gargalhadas. Enquanto todos se divertem, os dois fogem. Fogem para perto de um e do outro. A música ao fundo, uma noite clara, os olhos dela, a boca dele. Ele promete, ela desdenha. Ela lembra, ele insiste. Ele beija, ela cede. Ela chora, ele abraça. Ele sorri, ela também. E num segundo eles aceitam ir para qualquer lugar, desde que juntos. "Quer namorar comigo?'. Fim do quarto take.




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