terça-feira, 28 de junho de 2011

O coração de um hospital - Parte II de IV

Foto: Ana Luiza Verzola


Uma equipe de formiguinhas


Jaqueline, como gosta de ser chamada, trabalha no hospital desde que começaram as atividades, em 1989. "Até agora, 12 anos como encarregada", faz questão de frisar. São três mandatos de quatro anos, eleita pelos próprios funcionários, um sistema democrático que quase colocou em risco sua hegemonia no cargo. "Da última vez eu concorri com um advogado, acredita? Nós empatamos", mas ela continuou no cargo.

De cabelos curtos, crespos, oscilando entre o louro-avelã e o acaju-acobreado, Jaqueline é capaz de cumprimentar pelo nome um por um dos funcionários. A bordo do seu jaleco branco, divide a rotina entre circular pelas alas, atendendo a emergências da zeladoria e os afazeres administrativos à frente do computador, serviço esse que ainda carece de prática. Na sala da Divisão de Apoio, onde ficam os encarregados de alguns dos setores administrativos (limpeza, lavanderia e coleta de resíduos), a voz dela é a que mais se destaca, seja ao telefone, seja em uma conversa com a pessoa da mesa ao lado.

"Mas eu gosto de dizer que essa equipe, mesmo enxuta, trabalha como formiguinha, entende?". Com o discurso pouco austero e digno de uma palestra motivacional, Jaqueline faz parecer simples a tarefa de garantir a limpeza de instalações e rouparia de um hospital de quase 15 mil metros quadrados, com cerca de cem funcionários divididos em dois turnos.

No lugar da Jaqueline, quem fica à frente da lavanderia é Valdecir Leonardi, 42, um técnico ambiental que mora em Mandaguaçu e trabalha no hospital há cerca de dez anos. Apesar do cargo provisório de chefia, Leonardi passa quase todo o tempo na lavanderia, dobrando, batendo, carregando, arrastando. "Com o quadro de funcionários que nós temos, não dá pra ficar longe, nem parar o serviço."

O motivo da preocupação de Leonardi fica evidente para qualquer um que, ao entrar na lavanderia, se atente ao mural de recados pregado um pouco antes da mesa do cafézinho. Sob um quadro de feltro verde fica pendurada a relação de horas extras de cada funcionário. Alguns com 40, outros com 60. "O que passar disso vai para o banco de horas", explica Leonardi. Uma sacanagem para consenso geral.

Parte I

terça-feira, 21 de junho de 2011

O coração de um hospital - Parte I de IV

Foto: Ana Luiza Verzola

“Aqui é como um corpo que precisa estar em funcionamento. Eu me sinto bem ajudando a salvar vidas.”

Pelo corredor largo, ladrilhado em azul claro, silêncio e o cheiro que caracteriza um hospital em qualquer lugar do mundo. Às vezes um ou outro funcionário de botas e luvas e, eventualmente, uma maca apressada com três ou quatro residentes em volta. Quem conhece a rotina do Pronto Atendimento do Hospital Universitário de Maringá (HUM) não imagina a calmaria das demais dependências do complexo de saúde.

Arrastando uma espécie de grande baú com rodinhas, abarrotado de lençóis, um sujeito alto e magro atravessa o corredor e o silêncio. Não fosse o uniforme e a touca de rendinha, Leonardo Bérgamo, poderia muito bem ser confundido com um mordomo clichê dos filmes de terror americano. Do alto da sua meia idade e dono de um sorriso quase contido, cumprimenta a simpatia de uma das zeladoras e arrasta o carrinho para dentro da ala das UTIs. As roupas de cama utilizadas durante a noite já haviam sido trocadas e agora se amontoavam no expurgo - um tipo de despensa presente em todas as alas do hospital.

Agora com o dobro de peso, o carrinho volta ao corredor arejado que liga todas as alas como uma coluna vertebral. Do ambulatório à Imagenologia, das UTIs à bioquivalência, sem esquecer o Centro Cirúrgico e a Clínica Médica, todos são caminho e parada para o carrinho de Bérgamo que, estufado, segue o rumo da lavanderia ao final da primeira ronda do dia.

À porta da sala de máquinas, um senhorzinho Márcio Rodrigues, dá as boas vindas ao emaranhado de pano e excreções humanas. Devidamente protegido com avental, máscara, luva, capacete e um estômago duro na queda, é ele quem faz a separação das peças para lavagem: sujeira leve e urina para um lado; fezes, sangue e demais fluídos possíveis, para outro.

A classificação, necessária para indicar o número de lavagens pelas quais a peça deverá passar, não é a maior dificuldade da rotina de Rodrigues. O complicado mesmo é dar conta de 1,6 tonelada de peças por dia, com apenas duas máquinas industriais de 50 quilos. "Seria necessário, pelo menos, mais duas máquinas de 100 [quilos]", explica Rosemari Jaqueline Julião, a encarregada da lavanderia que, por hora, cumpre a função de chefe substituta da lavanderia e limpeza, enquanto a titular está de férias.

Primeira de quatro partes da reportagem criada para a revista Eu Tenho Profissão, quando precisei trabalhar no Hospital Universitário de Maringá para acompanhar a rotina dos Auxiliares Operacionais da ala de lavanderia e zeladoria. A revista Eu Tenho Profissão é uma publicação laboratorial do 3º ano de jornalismo do Cesumar sobre a orientação da professora Rosane Verdegay de Barros.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Como escrever um romance

Ela: Normalmente não começa com “era uma vez”. Das várias vezes que você começa, acaba por não começando nada, e quando de uma vez te pega, já começou, e você? Você, sem nem perceber, já suspira um conto de fadas. Se eu soubesse que ia começar hoje não estaria com esse vestido desbotado, não daria risada comendo amendoim e nunca, definitivamente nunca, escolheria essa cólica monstruosa.

Ele: Eu posso voltar outro dia.

Ela: Claro que não, que isso, não liga para o que eu falo.

Ele: Eu não ligo. Por mim ela poderia estar falando qualquer coisa. O começo nem sempre é o conteúdo, mas a sintonia. Isso que faz a mesa de um bar cheio de bêbados fedendo a cerveja se transformar num belo cenário romântico. Poderia ser um ponto de ônibus, a fila de um banco, o degrau de uma igreja. E daí se alguém cair aqui do lado? Eu viro comunista, corintiano e ateu se for preciso, só não pare de falar, por favor.

Ela: Falou comigo?

Ele: Não, tava pensando alto.

Ela: Será que tá tão na cara assim? Vou para de olhar. Talvez eu me esconda atrás desse cabelo horroroso. Porque tinha que ventar logo hoje? Mas e se ele me descobrir? Eu descubro o que eu não procurava. Ou procurava? Posso encontrar o que não busco? Justamente quando tento me esconder daquilo que mais queria? Eu quero, assumo, mas deixo para que ele descubra, não dizem que no amor esse é o principal momento?

Ele: Chega até a ser engraçado o tanto que nos vendemos nessa hora. A gente não perde uma oportunidade para provar as semelhanças. Usamos a mesma mão para buscar o amendoim. Temos o mesmo gosto por cerveja. Ela disse que gosta de blues e eu tenho certeza que ouvi Little Richards na recepção do dentista hoje cedo. É um sinal.

Ela: O que disse?

Ele: Nada, desculpa.

Ela: Não precisa se desculpar.

Ele: Tá bom, desculpa.

Ela: Se fosse num filme a nossa mão se encontraria, ele pagaria a conta e me ofereceria uma carona.

Ele: E você?

Ela: Não, obrigado, volto de táxi.

Ele: Mas está tarde, eu moro perto da sua casa, não tem problema.

Ela: Não quero incomodar. Não quero muita coisa. Quero que goste de flores no cabelo, de vestido florido, mas às vezes de salto alto. Quero que não se importe com meus dias ruins e nesses dias ruins eu quero chocolate. E quero colo. E carinho na cabeça. Quero falar de política e assistir ao futebol com você. Até busco a cerveja se você não fizer disso um troféu quando seus amigos estiverem em casa. Mas também quero que não durma quando tiver filme e pipoca. Quero que goste de viagens, quero que goste da nossa casa. Quero que desenhe um coração na janela, que tome banho de chuva comigo. Quero que fique, ainda tá cedo.

Ele: Eu não sei se devo.

Ela: Qual o problema? Minha mãe até fez bolo.

Ele: Tá bom, só mais meia hora. Mais meia hora e daqui a pouco estamos juntos de novo. Será que ela gosta de rosas? E se todo mundo estiver de chinelo, o que eu faço com esses sapatos novos? Eu vou aprender a cozinhar. E a tocar violão. Tenho que leva-la pra jantar naquele restaurante japonês. E não deixar toalha molhada na cama. E acordar mais cedo pra preparar um café com leite. Tá bom de açúcar?

Ela: Tá perfeito. A viagem, as fotos, os bombons. Parece que faz tanto tempo. Parece que me mudei ontem, que ontem mesmo essa casinha tava vazia. E sentávamos nas almofadas para assistir tv. Que comíamos com o prato no colo. Parece que...

Ele: Agora a palavra aparece à boca muito mais fácil. O “eu te amo” que morria entalado na garganta agora dança tango. Que o silêncio agora é poesia de quem sabe o que ouve, mesmo distante. Parece que fiquei romântico! Agora pouco importa se as frases bonitas que dizia vinham de uma embalagem de bombom. Que pra mim blues era só uma cor e que vestido florido era coisa de hippie. Não está mais na sintonia, nem no conteúdo. Está na forma que a nossa sombra forma de tardezinha. Está na...

Ela: Nas fotos, nas cartas, na despedida. Ele continua nas músicas que eu ouço, na roupa que eu uso, no caminho que eu faço. Ele está na pergunta dos amigos, no lixo que não foi pra fora, na minha cara amassada no espelho, naquela cadeira vazia. Ele teima em ficar nas paredes, na estante, no criado-mudo. Porque ele não vai embora de vez?

Ele: Eu esqueci uma coisa.

Ela: O que é?

Ele: Não sei, me ajuda a procurar?