sexta-feira, 8 de junho de 2012

José, sobrenome Ninguém

É uma sexta-feira pós-feriado, já é a quinta vez que busco café. Serve para matar o tempo. E tá frio, onze graus aqui dentro do escritório. Uns cinco na garoa que tá lá fora, se não estiver menos. No meio dela, um senhor arrasta seu carrinho parando de lixeira em lixeira. Daqui não consigo ver mais que seus trapos.

Deve se chamar José, o velho. Não deve ter mais de setenta. Arcado, rosto decorado de rugas, José parece não se importar com a chuva rala de quase inverno. Seu carrinho tá vazio, sinal que tem muito que fazer antes de voltar pra casa. Das janelas dos prédios vizinhos outros tantos entediados como eu acompanham seus passos.

José deve ter um sobrenome que dividiu com a mulher e com os filhos. Com eles, divide também uma casa de poucos cômodos e muitos cachorros. Antes de morar na cidade, José deve ter lidado na roça, tocado boiada, plantado feijão na enxada. Ele deve ter sido um menino salpicado de terra, um rapazinho com dente de cárie. Na roça não tem luxo não, sinhô.

Mesmo sendo rapazote banguela, José se enrabichou por uma mulata. Prometeu um pedaço de terra pra-mode-uma-casinha-fazê. Roçava capim, remendava cerca, curava bezerro, carregava mudança pra um dia casá. Dia, noite, sol, chuva. Juntava trocado pra fazer o mercado e dá de cumê pro neném que tá pra chegar. O terceiro nasceu bronquitoso, depois de muito custo vendeu o que tinha e veio pra cidade enfrentar fila de posto. “Aqui a gente se acerta, morena”.

Enfiou na Kombi do vizinho um bule azul, colchão véio, botina, tv sem antena, porta-retrato, livro de receita, a camisa de ir na missa, fogão, cômoda, penteadeira, mulher e as crianças.

José sentiu alegria de ver nascer cinco filhos.

José não lê, não sabe assinar seu nome.

José não teve dinheiro pra ir enterrar o pai, que ficou na roça.

José foi feirante, porteiro, carregador, caminhoneiro, servente.

José reza pra Nossa Senhora do Desterro todas as noites.

José emprestou dinheiro pra comprar o carrinho que tá puxando.

José não tem feriado.

José tentou, mas vai morrer pobre sem conseguir metade das coisas que prometeu pra mulata. Ás seis horas nós vamos pegar nossos carros e ir pra casa curtir o final de semana.

Eu só queria saber em qual tipo de mundo é justo sermos nós, e não José, a estarmos desse lado da janela.

2 comentários:

  1. Eis a pergunta que sempre me faço, ainda mais quando se trata de crianças vivendo suas vidas miseráveis e que o futuro, muito embora possa mudar, aponta sempre como não mais opressor que o seu presente...

    Cão. Mundo cão.

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  2. O futuro é tão opressor quanto. Quando tem sorte de ter futuro, né?

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