No corredor de qualquer hospital, em uma cidade como tantas outras, meia dúzia de doentes aguarda atendimento, sentada no banco de madeira que se estende por toda a parede. A porta se abre e dela surgem médico e paciente: - A senhora passa na farmácia ali na frente e entrega esta receita. É só tomar de oito em oito horas, ok? – e ao ver um amigo, também médico, aparecendo no corredor – Ô Mesquita, dá um pulinho aqui, por favor? Os dois se cumprimentam, animados, e a porta fecha, sem satisfações. - E aí, Mesquita? O que achou da manchete? – o primeiro médico aponta para o jornal que estava sobre a mesa, como um troféu. - Muito bom, quase um paladino da Justiça. Gostei desse seu penteado. - Alguém tem que brigar pela honra dessa classe! – e os dois riem, um encostado à mesa e o outro servindo-se na cafeteira. Do lado de fora da sala, na fila de espera, uma mulher, aparentando 50 anos, tira o pano manchado que enrolava o cabelo e começa a se abanar: - Calor, né? – pergunta para quem quiser ouvir e embalar uma prosa. - Tá mesmo – responde um homem de meia idade e olhos fundos – dá nem pra dormir num calorão desses – o rosto pálido contrasta com as grandes olheiras. - O ônibus que eu vim tava um forno. - O meu também. A senhora viu que vai subir o passe? – observa o espanto da mulher e continua – e o prefeito falou que ia baixar... mas o Lula tá fazendo uma lei pra aumentar o salário mínimo. Diz que vai chegar a quinhentos e pouco. - Aí sim, vai dá até pra fazer um churrasquinho no fim de semana – brinca, estampando no sorriso a falta de alguns dentes. Na sala, os doutores são interrompidos por uma enfermeira: - Posso chamar o próximo? - Pede pra ele esperar cinco minutinhos. - Ouve um pouco e fala que é virose – diz o segundo, depois que a moça saiu. - É bem isso. Esse povo adora uma consulta... – e como que despertando de um transe, volta ao sorriso e ao assunto – mas vê que absurdo, só de colégio para os meus filhos eu gasto cinco mil. Mais condomínio, carro e as contas normais. Com nove mil eu passo fome. - E outra – emenda o amigo – vamos falar sério, não estudei dez anos pra ganhar só isso. - Só por ter passado pelo trote merecemos dez mil. De volta ao corredor, o assunto entre os dois já tinha passado por todas as novelas e reality shows da TV. - Médico é tão ocupado, né? - É mesmo... tô preocupada com minha janta, deixei as crianças sozinhas. - A senhora não tem medo de acontecer alguma coisa? - Tenho não, lá no bairro é sossegado. A noite fica um pessoal na calçada, conversando, e a minha menina maior cuida dos pequenos – ela olha para os lados à procura de outro assunto e emenda: – Dizem que o doutor aí é bom. - É mesmo? - É... deu entrevista no jornal e tudo. - Olha que sorte a nossa. Na sala, o tema dos dois parecia que iria acabar. Mesquita, que tinha um paciente para atender na outra ala, já estava próximo à porta com a mão na maçaneta. - Mas presta atenção no que o pessoal tá comentando, viu Mesquita? Todo mundo tá interessado nisso. - Claro que tá, teve um pessoal falando em greve já – abriu a porta, desmanchou o sorriso e seguiu pelo corredor para voltar ao trabalho. - Acho tão bonito esses homens de branco. Médico, dentista... – diz a mulher, acompanhando-o com o olho. - Eu também trabalho de branco, mas essa vida de pasteleiro não dá futuro. O jeito é trabalhar pra educar os filhos, né não? – e depois da resposta afirmativa da simpática senhora, ele arremata – meu menino sonha ser doutor, diz que quer salvar vidas. Uma hora e quarenta e cinco minutos depois a porta se abre e a mulher é chamada para dentro do consultório. - Ôpa, chegou a minha vez. Até que foi rápido hoje. Até mais. - Boa sorte, dona. Quatro minutos e trinta e oito segundos de exames. O médico volta para a mesa, rabisca uma receita e, sem levantar os olhos para o lado da paciente, sentencia: - A senhora tem uma virose. É comum nessa época do ano. Volta pra casa, toma esses medicamentos e espera. Vai melhorar. |
segunda-feira, 19 de abril de 2010
Entre médicos e homens
Crônica publicada no Jornal Matéria Prima - 12/04/2010
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