quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Rei Davi Dá-nome-às-coisas*

Davi foi dado pela mãe. Depois de trocado por um litro de cachaça, o piázinho da praça viu que naquele mundo de adjetivos e abstratos não conseguiria ficar muito tempo, resolveu criar o seu. Para fugir de homens e trocados, caminhava pela madrugada criando palavras soltas e significados mágicos, tornou-se Rei.

Senão o próprio, que outro sentido poderia ter a vida? Família, Amigos e Trabalho eram palavras vazias, como Sorte. Para reverberar sentimentos, fazia amizades com postes, alambrados e caixas de papelão. Conversava. Em seu mundo as palavras não precisavam de som para ser escutadas.

E era ouvido.

Regava placas. Admirava as cores que elas tinham e como se mantinham vivas por tanto tempo. Abraçava os bancos. Sorria para garota do outdoor e ela sorria de volta. Encantava-se com o balé de carros, em sincronia perfeita, todo dia. Como é bonita a capacidade de serem sempre a mesma coisa!

Rei Davi não tinha preconceitos. Não sabia o que era isso. Não tinha partido, nem oposição. Não conservava valores, nem morais, nem costumes, nem passado ou futuro. Não conjugava verbos. Não contava seus dias. Não precisava sorrir para manter as aparências, mas sorria, sem se importar com a aparência que isso tinha.

E era invisível.

Ia à missa sem camisa. Ao culto sem a bíblia. Puxava o carrinho para dentro do shopping. Torcia á porta do bar, não importava qual fosse o time. Dormia na segunda-feira e tomava banho na sexta. Comia fruta machucada no almoço. Quando tinha fruta e almoço. Quando não tinha, inventava uma para matar a fome. Em seu mundo, nada precisava acontecer para ser sentido.

Como o abraço das pessoas normais que correm para um lugar, todo dia, em todas as ruas. Sentia-o. Queria um dia descobrir para onde vão todas essas, com rostos fechados e tanta pressa. Quem sabe um lugar onde poderiam sorrir? Onde comiam fruta no almoço e abraçavam pessoas? Onde torciam sem preconceito e sorriam sem manter as aparências? Quem sabe seria um outro mundo.

E era louco.

*Da série de crônicas "[o homem] invisível".

Um comentário: