Parece que engoliu um ralo. Vasculha com os olhos a imensidão de coisa alguma, procurando não se sabe o quê. De qualquer forma nada que encontrasse preencheria aquele espaço que não foi guardado, mas insiste em estar lá. Lá onde nada mais estava. Difícil mesmo era um sonhador entender que a procura por si só já não fazia mais sentido.
À sua frente uma tela em branco, que poderia bem servir de espelho. Espalhados sobre a mesa uma crença mal mastigada e pedaços de bandeira social-democrata sobre uma revista de quadrinhos. Os rabiscos, de traço rasgados e imprecisos, não se encaixam nem entre os pós-modernos. Não usa óculos, só um cartão de crédito entre dúzias de canhotos.
Inventava manias para justificar seus hábitos estranhos.
Inventava os hábitos para fugir do mundo.
Inventava um mundo para viver manias.
Inventava um mundo em que só um estranho habita.
Nas paredes da casa que não é sua, lembranças mal divididas: meio angústia, meio vivida. Entre os retratos, uma janela que não tem vista para lugar nenhum, ainda assim meio encoberta por uma cortina de receio. Na cama que ninguém mais deitou, o resto de relações mal resolvidas: um amor que nunca existiu, uma decepção que nunca esqueceu e meia dúzia de beijos mal sonhados.
Mesmo assim não era infeliz, o pobre. Era passagem. Era ponte. Era degrau. Era número de inscrição fiscal. Era inquilino da vida dos outros. A terceira pessoa no plural. Era cabelo, barba, pêlo. Era aquela sensação de ausência. Aquela sempre falta. Um passado mal resolvido. Um otimismo desnecessário. Talvez seria medo, se arriscasse, mas não valia nem o suicídio. Porque era ralo.